Especialistas entendem que o resultado das eleições pode definir a crise econômica da Argentina e indicam possíveis consequências para o Brasil
Repórter: Beatriz Serejo
Editor: Gabriel Amaro
Os candidatos Javier Milei, do partido Liberdade Avança, e o peronista Sergio Massa, atual ministro da Economia, disputarão a presidência da Argentina no dia 19 de novembro, no segundo turno das eleições. O ultraliberal Milei lidera com 52% dos votos válidos, enquanto o economista aparece com 48%, segundo uma pesquisa da Atlas Intel no primeiro turno. O confronto eleitoral é decisivo para o futuro econômico argentino e suas relações internacionais, especialmente em um contexto de crise.
Representante da esquerda peronista-kirchnerista, Sergio Massa prioriza em seu plano de governo o equilíbrio fiscal, o superávit comercial e o desenvolvimento inclusivo. Suas promessas incluem maior distribuição de renda e investimentos em educação pública e universidades, condicionados à reestruturação econômica da Argentina. Esta questão é o principal empecilho em sua candidatura.
O economista apresentou a inauguração do gasoduto Néstor Kirchner como oferta de reparação econômica. “Nosso lítio, nosso gás, nosso petróleo, o que o campo produz, o que as indústria produzem, isso nos trará dólares para sermos livres e soberanos”, afirmou Sergio Massa para o programa de televisão C5N.
A manutenção da intervenção estatal na economia e esforços para obter financiamento internacional para a dívida do país também constam em seu plano. Massa propõe uma política habitacional com ajustes acima da inflação e um investimento significativo no duto de gás natural no campo Vaca Muerta, projeto que envolve o Brasil. Na educação, sua intenção é integrar tecnologia e inovação ao currículo escolar, com ênfase em robótica e programação. Em segurança, Massa anunciou a criação de uma agência similar ao FBI americano para combater o crime e o tráfico de drogas.
Javier Milei apresenta um plano de transformação econômica em três fases, incluindo a controversa proposta de dolarização da economia argentina. A substituição do peso argentino pelo dólar americano como moeda comum seria uma tentativa de acabar com as divisas cambiais do país. De acordo com Milei, a moeda local é mais fraca que o dólar, e isso motivaria os argentinos a terem mais poder de compra.
O especialista em Ciência Política e economista formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Wendel Faria, considera a ideia de dolarizar um país em crise inviável e ilusória: “Milei traz argumentos extremistas em relação à moeda. Para a dolarização do país é preciso ter dólares, o que a Argentina não tem. De onde viriam esses dólares? Isso iria impactar drasticamente o turismo e a economia argentina”.
Wendel explica que o país precisaria ser financiado por outro com a moeda desejada; porém, considerando o cenário de crise atual, nenhuma nação investiria em uma economia quebrada. “Além do choque de liquidez que poderia ocorrer, a inflação argentina cambial é imensa, não existe controle fiscal. É primordial restaurar a economia do país para pensar em mudar sua moeda,” diz o cientista político.
O plano econômico de Milei inclui uma série de reformas radicais. Ele propõe um corte significativo nas despesas públicas, uma reforma tributária para reduzir impostos, e uma reestruturação do sistema de pensões. O número de ministérios seria reduzido para oito, e haveria uma redução gradual dos planos sociais. Milei também defende a extinção do Banco Central e reformas nos sistemas de saúde, educação e segurança.
Seus eixos principais são a unificação da taxa de câmbio, cortes estatais e privatizações. No trabalho, ele visa substituir a remuneração por seguro desemprego para diminuir custos trabalhistas. Na saúde, propõe a generalização da arrecadação de benefícios e, na educação, a eliminação da obrigatoriedade da educação sexual e a adoção de um sistema de vouchers para financiamento educacional pelos pais.
Além disso, Milei sugere medidas de segurança severas, como a militarização do sistema prisional, desregulamentação da posse de armas de fogo, redução da idade de imputabilidade penal para menores, proibição da entrada de estrangeiros com antecedentes criminais e deportação imediata de estrangeiros que cometam crimes no país.
A atual crise argentina
A Argentina enfrenta sua terceira crise econômica em menos de 40 anos. O país lida com uma inflação que passa dos três dígitos desde fevereiro de 2023. A situação é atribuída principalmente à emissão excessiva de pesos, agravada por anos de déficits fiscais e subsídios governamentais.
Segundo uma pesquisa feita pelo Banco Mundial em outubro deste ano, a Argentina tem os maiores subsídios da América Latina: cerca de 63% dos gastos do governo. O atual presidente peronista Alberto Fernández passou a emitir títulos públicos para serem vendidos no mercado financeiro para financiar as despesas. Contudo, devido à falta de credibilidade do país, o chefe de estado recorreu à impressão desenfreada de pesos para tentar controlar as taxas de inflação.
Atualmente, a Argentina lida com uma inflação de 138% e tem cerca de 40% de sua população na pobreza, segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censo (Indec), ligado ao Ministério da Economia. Em agosto, os supermercados foram alvo de saques pelos preços inacessíveis. O país depende de importações para sua indústria; as exportações de commodities fornecem dólares para a reserva, o que ajuda o mercado cambial, um tema central na corrida pela presidência.
Marcelo Perry, cientista político formado em Finanças pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), afirma que ainda existe esperança no contexto argentino, mas que tudo dependerá do resultado das eleições de 2023: “O caminho para melhoria da economia do país é pela reparação das finanças públicas, políticas fiscais e monetárias para reduzir a inflação. Com fortalecimento das contas públicas, reformas que estimulem o investimento no país e a entrada de capital”.
Perry diz que a economia argentina pode começar a fluir quando o país recuperar sua credibilidade, já que uma das formas de renegociar as dívidas é liberar a entrada de capital e financiamento estrangeiro. Porém, para que isso aconteça é necessário confiança no investimento. “A estabilização da Argentina depende de medidas a longo prazo que a fortaleçam de dentro para fora, e isso só será realizado por um chefe de estado que priorize a economia acima da soberania”, argumenta Perry.
O especialista critica as propostas de Milei, e enfatiza que a dolarização que o candidato prevê é uma forma de afundar o país em mais dívidas: “Hoje a Argentina possui 17 tipos de dólares em circulação, além das milhares de notas de pesos que desvalorizam a economia. Se os dólares fossem realmente uma solução, o país não estaria com três dígitos de inflação”.
A Argentina já passou por uma tentativa de dolarização da moeda na década de 1990, o que moldou a cultura econômica do país na dependência do dólar em transações corriqueiras. Entretanto, com o surgimento de diferentes tipos de dólares com câmbios distintos, essa paridade deu lugar a crise que ocorreu no início dos anos 2000.
Perspectivas para o Brasil
Wendel Faria esclarece que ambos candidatos apresentam programas de governo opostos, e que o resultado da eleição poderá significar uma nova relação econômica entre o Brasil e a Argentina: “Caso o Massa vença, é provável que a relação diplomática e comercial entre os países continue a mesma. Mas se o Milei vencer é possível que a relação comercial seja rompida, até pela visão de extrema direita dele.”
De acordo com a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), a Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, com um fluxo bilateral de US$ 28,4 bilhões. Além disso, o mercado argentino é o principal destino de manufaturas brasileiras.
Wendel entende que o cenário brasileiro pode ser prejudicado se Javier Milei se tornar o presidente da Argentina, visto que o candidato já propôs ideias extremas. “Ele já deixou claro em sua candidatura que tiraria a Argentina do Mercosul, o que impacta diretamente os países do bloco, como o Brasil. Outra ideia dele é de romper laços comerciais com países que se dizem comunistas, como o Brasil e a China, na visão de Milei,” ele diz.
O especialista destaca que a possível dolarização do país no governo de Milei afeta diretamente a balança comercial com o Brasil. Ele explica que a substituição dos pesos pelo dólar iria acabar com uma vantagem competitiva entre as exportações: “A maior vantagem do Brasil em fazer comércio com a Argentina é pela desvalorização da sua moeda, com a dolarização a exportação de commodities agrícolas, por exemplo, iria ser prejudicada ou até rompida”.
Por outro lado, a eleição de Massa representa continuidade tanto nas relações de comércio, quanto no sistema político e econômico, com crescente índices de inflação e pobreza. As possíveis vantagens dessa vitória para o Brasil seriam o aumento do fluxo comercial, caso o candidato consiga reestruturar a economia e fortalecer o Mercosul.
Marcelo Perry acredita que a proximidade ideológica entre Sergio Massa e o presidente Lula (PT) facilitaria as relações diplomáticas entre ambos: “Como um bloco econômico, o governo de Massa facilitaria negociações comerciais e as agendas do Mercosul, além de avançar o acordo do bloco com a União Europeia”.
No entanto, o especialista lembra que o governo de Massa não indica melhoria para a situação econômica da Argentina — o ministro pertence ao grupo peronista da política, ao qual é atribuída a responsabilidade da crise do país. “A continuidade do peronismo significa a manutenção do cenário presente na Argentina, e se Massa não conseguir frear a crise, o Brasil pode perder um parceiro importante,” afirma Perry.
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