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  • Ana Beatriz Dias

Centenário dos Camisas Negras: Vasco contra o racismo e a exclusão no futebol do RJ

Cruz-maltino lançou terceiro uniforme da temporada em homenagem à equipe campeã carioca de 1923


Repórter: Ana Beatriz Dias

Editor: Bernardo Monteiro


O pioneirismo do clube da Zona Norte na luta contra o racismo e o preconceito é motivo de orgulho até os dias de hoje para a torcida e também para o clube, que lançou no dia 16 de setembro de 2023 o terceiro uniforme em homenagem ao centenário dos campeões cariocas. O Vasco da Gama disputou a principal divisão do futebol carioca e conquistou o primeiro título estadual de sua história em 1923, com um elenco que era composto por negros, pobres e operários. Conhecidos como “Camisas Negras” (em alusão a cor do uniforme), o histórico time cruz-maltino é um marco na inserção de jogadores negros no esporte.


Time do Vasco campeão carioca em 1923 - Foto: Reprodução

No início do século XX, o futebol do Rio de Janeiro era racista e elitista. Clubes da Zona Sul como Botafogo, Flamengo e Fluminense, além do América, tinham, em sua maioria, atletas brancos. Com origem no subúrbio do Rio, o Vasco ingressou no futebol em 1915 e, no ano seguinte, buscou jogadores na periferia da cidade. Inicialmente, a equipe sofreu tentativa de exclusão por parte da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (que classificava para o Estadual).


Um dos impasses foi a proibição de que analfabetos disputassem os jogos. Sendo assim, Custódio Moura, bibliotecário do clube, os ensinou a ler e a escrever. Com uma campanha de 11 vitórias, dois empates e uma derrota, o Vasco foi campeão na final contra o Flamengo, no dia 12 de agosto de 1923.


Repercussão e legado dos Camisas Negras


Iunes Alli, vascaíno e historiador especialista em história do futebol, afirmou que a equipe campeã carioca de 1923 é celebrada e lembrada pela torcida. Orgulhoso do cruz-maltino ser um clube que se identifica com as camadas mais populares da sociedade, principalmente pela história e também pela localização (com o Estádio São Januário ao lado da favela da Barreira do Vasco), Alli citou a forte ligação que os vascaínos têm com os Camisas Negras. “A torcida, por sua vez, sempre engaja a história deles através de músicas, bandeiras e outras manifestações nos jogos. Sempre exaltamos a forma com que os Camisas Negras superaram tamanhas dificuldades, assim como as que o clube tem enfrentado recentemente.”


Em um contexto de poucas oportunidades para os negros na sociedade da época, quando a prática amadora do futebol era a única aceita na principal liga do então Distrito Federal, os jogadores pobres não tinham oportunidades nos times da elite carioca. Então, os Camisas Negras só se formaram por conta da exclusão e por um clube que subverteu esses conceitos. O historiador disse que o legado está presente nos corações dos vascaínos e no patrimônio físico do Vasco. “É natural que a gente reconheça e valorize a história que foi tão importante não só para o futebol do Rio, mas do Brasil. O Centro de Memória do Vasco é uma grande contribuição para resgatar e cuidar da resistência dos Camisas Negras.”


A conquista do principal título do esporte carioca por um time composto de jogadores negros e pobres foi um acontecimento incomum e que gerou reações diversas na sociedade. Os que pertenciam às elites sociais e econômicas se manifestaram contrários à manutenção de um elenco com aquelas características. Entretanto, pessoas que faziam parte de camadas mais populares se identificaram com o Vasco. Alli ainda observou que foi justamente nessa época que torcedores começaram a acompanhar o time nos seus jogos. “O sucesso do Vasco em 1923 fez com que boa parte da sociedade passasse a admirar aquele elenco, o crescimento da torcida foi notável durante os anos 1920.”


Estádio São Januário, inaugurado em 1927 - Foto: Getty Images

Impacto do Ofício nº 261 e a “Resposta Histórica”


A "Resposta Histórica" foi um símbolo de luta contra o preconceito racial e social no Brasil, na qual o Vasco se recusou a aceitar as regras elitistas e preconceituosas impostas pelos dirigentes dos clubes da elite carioca. O título de 1923 fez com que os times da Zona Sul tomassem a decisão de abandonar a Liga Metropolitana e fundassem a AMEA (Associação Metropolitana de Esportes Atléticos), para que o esporte pudesse continuar na tradição de ser praticado pelos mais ricos. Com este ofício, o cruz-maltino demonstrou que os negros e pobres eram bem-vindos no time e que seus jogadores não seriam rejeitados ou esquecidos pela luta e contribuição, mas sim respeitados e honrados por suas trajetórias.


O especialista avaliou que a carta do Dr. José Augusto Prestes, presidente do clube, foi o marco da transformação do futebol brasileiro que aconteceria desde então. “O Vasco não se submeteu às exigências preconceituosas que lhe foram impostas para permanecer na elite do futebol carioca. O clube inaugurou uma nova era que se estenderia pelo país também com outras influências, de um maior profissionalismo no futebol e de mais oportunidades para negros e pobres.”


Em 1925, um acordo entre a equipe cruz-maltina e a nova associação, AMEA, trouxe o Vasco de volta ao campeonato disputado pelos grandes.


Os Camisas Negras e o racismo no futebol atual


Apesar de na atualidade não existir mais restrições para a escalação de jogadores negros nos times brasileiros, algumas dificuldades persistem, na medida que o racismo ainda é presente na sociedade. Pela história escrita em 1923, os negros, pobres, analfabetos e menos favorecidos puderam cada vez mais conquistar seus espaços no esporte. Para Yuri Melo, também torcedor vascaíno, essa semente plantada há 100 anos, que os torcedores celebram com muito orgulho, os levou alguns anos depois ao Rei do Futebol, o Pelé.


“Talvez por uma coincidência do destino, o Pelé despontou com a camisa do Vasco em um combinado contra o Santos, em um torneio no Maracanã que o levou a ser convocado para a Seleção Brasileira. Também possibilitou que o futebol seja hoje o esporte mais popular e democrático do Brasil, sendo praticado por todas as classes e raças, sem distinção.” No entanto, em outros lugares ao redor do mundo, não é visto o mesmo progresso com relação a cor dos atletas, onde muitas das vezes são praticados lamentáveis atos de racismo, como por exemplo, o enfrentado por Vinícius Jr. na Espanha.


Importância simbólica do terceiro uniforme


Jogadores do Vasco estreando o uniforme no clássico contra o Fluminense, no dia 16/9/23 - Foto: Leandro Amorim

Resgate importante da história do Vasco, a camisa negra que batizou aqueles jogadores há um século é símbolo da luta do clube contra as dificuldades enfrentadas no passado e no presente. Recentemente, o fechamento do Estádio de São Januário foi baseado em justificativas inaceitáveis e preconceituosas.


Sobre a importância do uniforme, Melo cita que é de um valor extremamente simbólico, pois a sociedade precisa entender que o Vasco só existe por causa de sua história. “Precisamos sempre lembrar de onde viemos, celebrar e lutar por nossas raízes. É uma forma bacana de chamar a atenção das pessoas, principalmente das crianças, porque podemos contar melhor a história, fazê-las entenderem e, dessa forma, formarmos cidadãos melhores através do futebol.”


O torcedor revela que o pioneirismo do Vasco em participar de uma causa tão nobre é motivo de muita emoção. Para ele, falar de futebol no Brasil é sinônimo de falar de Vasco. O caminho é longo para que todo tipo de preconceito seja extinguido e o fato do cruz-maltino se posicionar frente a esse tipo de pauta mostra que é preciso se impor contra a descriminação no esporte. “A democracia e a inclusão nos ajudam a lembrar que essa luta está longe de ter um fim. Caminhamos, porém, não chegamos ao percurso final e temos de batalhar sempre para que tenhamos um futebol livre do racismo”, conclui Yuri.


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